terça-feira, 28 de novembro de 2017

“OLHO POR OLHO, DENTE POR DENTE”




“Olho por olho, dente por dente” significará, realmente, 
um olho por um olho?





     “Olho por olho, dente por dente”: esta passagem do Livro do Êxodo (Êx. 21:24) é uma das mais conhecidas da Torah, e também uma das que mais tem prejudicado a reputação do Judaísmo ao longo dos tempos.
     Em sociedades pré-bíblicas não é difícil imaginar uma vítima de agressão tirar a vida ao seu agressor, como forma de retaliação, criando assim um ciclo infindável de conflitos e vinganças, que se prolongaria de geração em geração. Ao definir a ideia de que uma lesão provocada deve ser objecto de reparação material, a Torah não aprova a vingança, estabelecendo como reparação uma medida standard imediatamente perceptível como justa. 



Jean Fouquet, Pompeu no Templo de Jerusalém, c. 1470, BNF, Paris


       É do conhecimento geral que a Judeia do Período Romano estava muito fragilizada. A influência greco-romana era omnipresente e insidiosa, com manifestações inegáveis de paganismo, e aos problemas interétnicos entre as populações judaicas e não-judaicas, juntavam-se as tensões sociais, religiosas e políticas no seio da própria sociedade judaica. Pode assim deduzir-se que numa população tão heterogénea e conturbada, a Torah não fosse conhecida de todos, ou que muitos dela tivessem um conhecimento pobre e limitado, se não mesmo deturpado.

     Como mais adiante tentaremos demonstrar, a frase “olho por olho, dente por dente” faz parte de uma sentença destinada a implementar normas de justiça e equidade. Contudo, por muito revolucionária que a directiva “olho, por olho” tenha sido quando a Torah foi escrita, durante o Período Romano terá degenerado numa espécie de receita para um legalismo mesquinho e rudimentar — uma troca por troca.




James Tissot, “O Sermão da Montanha”, Ilustração para “A Vida de Cristo”, c. 1886-96, Brooklyn Museum of Art, Nova Iorque


«Não penseis que Eu vim abolir a Lei e os Profetas. 
Não vim abolir, mas dar-lhes pleno cumprimento.» 
(Sermão da Montanha – Mateus 5:17).


     No Sermão da Montanha, Jesus fez questão de realçar o tema, quando repudiou a frase “olho por olho, dente, por dente”, em concreto: «Ouvistes o que foi dito: “Olho por olho, dente por dente!” Eu, porém, digo-vos: não vos vingueis de quem vos fez mal. Pelo contrário: se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda!» (Mateus 5:38-39). Este texto, para ser entendido, não pode ser extirpado do contexto maior. Ou seja, o propósito de Jesus no Sermão da Montanha não era o de abolir a Lei de Deus, revelada por meio de Moisés, mas antes de a confirmar, refutando as distorções que lhe eram feitas.



John Hamilton Mortimer, Shylock, 1776, Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque



     Para a posteridade, “olho por olho, dente por dente”, também chamada “Lei de Talião”, viria a representar para a Cristandade o que de pior havia no Judaísmo, uma religião de lei, em vez de uma religião de amor; o Judaísmo oferece uma vingança rancorosa, enquanto o Cristianismo oferece uma generosidade sublime – uma equação que foi, e ainda continua a ser, profundamente influente na cultura ocidental.

     Na peça O Mercador de Veneza, de Shakespeare, a insistência de Shylock, o usurário judeu, em tirar uma libra de carne do corpo de António, o mercador cristão, conforme o espírito da lei, é uma metáfora eloquente desta ideia. A disputa entre Shylock e António levanta a questão sobre o direito do credor à sua propriedade, e o direito à vida. Objectivamente, o mote central da peça é sobre a Lei e a Justiça, onde subjaz o conflito entre a Cristianismo, representado por António, e o Judaísmo, representado por Shylock. 


O PROBLEMA

    Interpretar o conceito bíblico “olho por olho, dente por dente” como uma forma de reciprocidade rigorosa entre o crime e a pena, é consensual, como sabemos. Mas se lermos atentamente o texto da Torah, percebemos que o seu objectivo não é a vingança, mas sim fazer justiça: “Olho por olho, dente por dente, (…). E quando ferir um homem o olho de seu escravo ou o olho de sua escrava, e o danificar, o deixará em liberdade por causa de seu olho.” (Êx. 21: 24-26).
     O texto bíblico é claro quando faz a correspondência entre o mal causado a alguém e o castigo imposto a quem o causou. Neste caso, o agressor perde o direito à sua propriedade, enquanto a vítima ganha a liberdade. Nenhum momento do texto aponta para vingança. Pelo contrário: a vítima, apesar da sua condição de escravo, tem o direito inalienável a não ser lesada na sua integridade física. Porque o foi, é indemnizada com o direito à liberdade. Isto não é vingança, é justiça!
     Desta forma, “olho por olho, dente por dente”, não tem o sentido que lhe é atribuído; na verdade é uma lei que impõe critérios de justiça e equidade, na qual aquele que transgride é obrigado a compensar a parte lesada.
     Partindo da lei bíblica, os rabis produziram uma série de textos legais, constantes nos tratados Ketuvot 32b e Bava Kama 83b, que integram o Talmude. Embora não se saiba exactamente quando foi instituída a prática do pagamento de multas para ressarcir danos físicos causados a outrem, sabe-se que quando a Mishnah foi compilada, no século I da EC, já era uma prática consagrada.

LER, COMPARAR E CONTEXTUALIZAR



Haggadah Ashkenazi, Cinco Rabis em Bnei Brak, c. 1560-1575. 
British Library, Londres

AYIN TACHAT AYIN, SHEIN TACHAT SHEIN
“OLHO POR OLHO, DENTE POR DENTE”

      No texto bíblico, “Olho por olho, dente por dente” apresenta-se em hebraico na forma “Ayin tachat ayin, shein tachat shein”. Alguns especialistas defendem que a palavra “tachat”, que é traduzida “por” não tem este significado, significando antes “no lugar de”. Para o efeito dão alguns exemplos: no episódio do sacrifício de Isaac, Abraão sacrifica um carneiro tachat o seu filho Isaac (Génesis 22:13); na história de José na corte do Faraó, Judah diz a José: «deixa-me ser teu servo tachat Benjamim» (Génesis 44:33). Ou o episódio da prostituta Rahav em Jericó, quando os espiões israelitas dizem a Rahav que se esta não os denunciar, a troco da sua discrição eles empenham as suas vidas tachat dela (“A nossa vida responderá pela vossa, se não denunciardes esta nossa conversa.” (Josué – 2:14).
     Daqui podemos concluir que alguém que cega outra pessoa, tem de dar a essa pessoa algo tachat o olho perdido, alguma coisa no lugar do olho perdido. Essa alguma coisa, diz-nos a tradição, será uma compensação monetária.

Há um Deus, mas há muitas fés.
Isto diz-nos que Deus é maior que a religião.

     Um dos momentos mais trágicos da civilização ocidental, foi quando os cristãos começaram a distinguir entre aquilo a que chamaram o “Deus de vingança do Velho Testamento”, por oposição ao “Deus de amor do Novo Testamento”. É uma daquelas assunções que está de tal forma enraizada na cultura, que nem é posta em causa. Causa arrepios, só de pensar quantos judeus perderam a vida à luz deste preconceito.
     “Olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé” é apenas um versículo dos 118 que compõem o Código Legislativo, compreendido entre os capítulos 21 e 24 (Parashat Mishpatim), do Livro do Êxodo. Interpretar a frase “olho, por olho, dente por dente” na perspectiva da vingança, não é um erro menor. Afinal, ler um verso, tirá-lo do contexto, e formular conclusões a partir daí, pode ter consequências devastadoras. E tem prejudicado gravemente a reputação do Judaísmo.



Este artigo foi uma oferta da,
Sónia Craveiro


Muito obrigada J

Fontes:

Torá, a Lei de Moisés, Editora e Livraria Sêfer Ltda, 2001, São Paulo, Brasil;
Bíblia Sagrada, Evangelho segundo Mateus, Paulus Editora, 2012, Lisboa;